segunda-feira, 6 de junho de 2011

Autopiedade

 À tarde, o vento sopra cada vez mais forte. O céu escurece, como nos dias em que parece que a noite se apressa em chegar. É inverno e as árvores são distantes umas das outras. O pequeno pássaro aninha-se, solitário, tentando se proteger do frio. A noite cai em definitivo e o breu toma conta da paisagem. O pássaro nada sente, além do frio, do balançar dos galhos, da árvore, do frio. A tempestade aumenta, galhos se quebram e o pequeno ninho, do pequeno pássaro, voa com o vento. Desprevenido e confuso o pássaro tenta equilibra-se no ar, mas ele nada sente, além do vento revirando seu corpo e seu corpo batendo com violência em uma árvore, para em seguida bater com violência no chão. Seu corpo dói, suas penas estão encharcadas, seu corpo é pressionado pelo vento contra o vão ao pé da arvore. E então ele adormece, porque nada sente.

 Na manha seguinte, a geada no solo abraça o pequeno pássaro, seu corpo inerte. E os pequeninos cristais de gelo começam a se desmanchar quando os raios de sol começam a tocá-los. Passam-se horas e o pássaro desperta. Vagarosamente levanta, tenta mover as asas e pia, porque nada sente. Quando seu corpo recupera o calor e ele consegue voar, junta gravetos pela mata e constrói seu ninho, galho após galho e aninha-se ao entardecer. Adormece, sem nada sentir.

 O vento da tempestade arrastou o pássaro para muito longe de seu antigo ninho. Quando amanhece ele pia e se prepara para voar. Abre suas asas e lança vôo. Por entre as arvores de casca seca ele procura algum fruto. A fome aperta seu estômago e o impele a voar, incessantemente. E é o que ele faz, porque nada sente. Até que aparece à sua frente uma frondosa árvore, cheia de viço, cor. De seus galhos pendem frutos que brilham e os olhos do pequeno pássaro, que nada sente, até começam a brilhar. Ele pousa em um dos galhos e se farta daquele fruto enquanto o cinza das outras arvores enche-se de cinza, o ar da manhã enche-se de aroma e o pequeno coração do pássaro enche-se de calor. Quando se dá conta – pela primeira vez em toda sua existência ele se dá conta -, ele sente. E sente a alegria de seu corpo aquecido ao sol, do vento passando por suas penas, do seu próprio piar saindo de seu bico. E ele voa feliz e sentindo, até chegar ao seu recém construído ninho. Que agora é seu recém destruído ninho. Ele não entende. O ninho não existe mais, só os galhos que o compunham, espalhados pelo chão. O pequeno pássaro não entende, mas sente. Lembra-se da noite tempestuosa. Agora ele sente o frio, sente a dor em seu corpo, sente os inúmeros vôos em busca dos galhos certos para o novo ninho e, quando percebe as nuvens se fecharem, sente medo.

 Agora, ao pequeno pássaro só resta o desanimo e o passar das horas quando olha para onde deveria estar seu ninho. Ele se lembra da árvore, do fruto. Começa seu vôo até aquele maldito lugar, que lhe deu tanta felicidade, porque agora o que ele queria era a alegria daquela manha, ou o não-sentir de sua antiga vida. Ao aproximar-se do local percebe fogo na árvore frondosa e nas árvores secas ao redor dela. Pequenas gotas de chuva começam a cair, já é tarde. E cada pequenina gota o pássaro sente. Sente cada segundo da noite anterior e do gelo quase partindo suas pequenas garras pela manhã. E sente também todas as outras tempestades pelas quais passou, algumas piores e mais crueis. Então ele voa para o alto e, em seguida, mergulha em direção a árvore incandescente. E se enterra na brasa vermelha que se tornou o tronco da árvore. Ele arde, ele sente. Sente o calor, uma alegria triste, uma tristeza feliz. Deseja que o fogo não o abandone. Deseja que o fogo o segure firme em seus braços. O pequeno pássaro não pia, apenas aguarda parar de sentir, de tanto que sentiu. Porque em um dia ele sentiu o suficiente por sua vida inteira. Naquele dia sua vida inteira ele sentiu. Por ser apenas um pássaro, que acabara de começar a sentir, não entendia as coisas, apenas as sentia, e a última coisa que sentiu foi: “maldito o dia em que comecei a sentir”.

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