Olho
para cima: as nuvens estão pesadas. Estão literalmente pesadas. Eu
as sinto. Sinto pesarem em meus ombros, nos meus olhos, pressionando
minhas costas, forçando minhas pernas.
Algumas
vezes passa por mim um pouco de ar gelado. É estranho. Esse ar
amortece levemente minhas pantorrilhas, aquece um pouco minhas costas
abaixo das escápulas (não sei porquê) e alfineta suavemente meu
abdômen.
- Minha visão está turva. Mal vejo as pessoas. Vejo vultos. Ouço suas vozes - não que as compreenda nitidamente mas percebo o burburinho, percebo que passam próximas a mim. Será que as pessoas me vêm? Espero que não. Sinto-me uma pedra: cinza, apática, dura. Rolando com várias toneladas morro abaixo, sem nada lhe podendo apresentar resistência.
As vozes
são cansativas: dão-me sono, assim como seus rostos – que eu nem
consigo focalizar, vejo apenas esses borrões que poderiam muito bem
ser apenas a luz passando pela névoa. O que são? Parece que percebo
tudo por filtros, que tudo o que percebo não passa diretamente por
meus sentidos, que essa percepção não é imediata: parece que
enxergo através de um vidro, ouço sons que passam por telas de
feltro e sinto o toque não das coisas em si, mas sim de uma grossa
camada de poeira, impregnada. Insonso.
Sinto
algo desligado em mim. Ou que estou ligado no automático. Ou ambos.
Meus olhos atravessam as coisas, minha fala sai inconscientemente,
respondo genericamente, sem processamento de informação.
O
sorriso é a pior parte. Por faltar-me a arte da dissimulação o
sorriso é nitidamente plástico, frio, como se fosse uma impressora
matricial a sorrir para uma cadeira alaranjada.
Fazia
tempo que isso não acontecia tão forte. Acho que os golpes vão se
acumulando até que os hematomas começam a abrir e vazar pus.
Preciso de alívio. Preciso sentir meu estômago aquecer, meu olhos
umedecerem, meus ombros relaxarem, e deixar de enxergar ouvir e tocar
qualquer coisa. Porque nada importa.
Caminhando é diferente: é muito pior. Sinto-me preso, oprimido.
Nunca tive claustrofobia mas imagino que a sensação se assemelhe a
que sinto agora.
Na
primeira dose parece que minha mente começa a se adequar a realidade
- descer a seu nível – e assim as coisas parecem mais
reconhecíveis, verossímeis, familiares. Mas minha respiração
continua um pouco ofegante. Na segunda dose a respiração começa a
acalmar também.
Atravesso uma praça durante a madrugada. Estou conversando,
distraído, desligado. Nunca faço isso. Grande burrice. Dois caras
me abordam. Apareceram de repente, nem percebi que se aproximavam
(muita burrice!). Estão com as mãos nos bolsos de suas jaquetas,
fazendo menção de estarem armados. Penso nas minhas possibilidades.
- Cara, tô sem celular.
Ele
segura na alça da minha mochila e a solto em sua mão. Ela
estava pesada, com um livro grande e dois litros de vodka. Aproveito
esse momento para correr até o outro lado da rua. Pego o celular
para que vejam que estou ligando para a polícia. Na verdade não
estou. Não estou conseguindo desbloquear o celular. Vou caminhando
para trás olhando na direção dos assaltantes, tentando ver se
sacam alguma arma.
Alguns
metros depois consigo ligar para a polícia. Falta 20 minutos para o
próximo ônibus. Pegarei o ônibus até o terminal e de lá pegarei
um táxi até em casa. Chegando ao terminal não há um único táxi.
Ligo para a rádio-táxi. A atendente me informa que a espera é de
10 à 15 minutos. Provavelmente demorará mais de 30 minutos. Vou
caminhando até em casa: 40 minutos de caminhada. Deito atravessado
na cama, do jeito que cheguei e desmaio.
Pela
manhã me sinto estranho, apático. Ficarei sozinho em casa esse fim
de semana. Mando uma mensagem pelo telefone celular:
- Bem e você?
- Bem também. E aí.. não está a fim de vir aqui em casa hoje à noite
- Não.
É... não estão sendo meus melhores dias.
Sinto-me
sereno. Estou sem minhas garrafas de vodka. Acho que já posso
morrer.