Eu gostava muito de Arte, pricipalmente pinturas. Gostava de apreciar
sua forma, estrutura, cor, conceito... Eu andava por alguns museus e
vernisages passando um bom tempo com essas obras enquanto bebia, comia
e... bebia.
Certa vez me falaram de um quadro novo em nosso
meio. Me disseram que era muito interessante, que tinha qualidade. Eu
contei que ja tinha passado rapidamente por essa pintura e não tinha
gostado muito, a princípio. Mas me propus a voltar a olhá-la com mais
atenção.
Fiquei ali, em sua frente, por alguns minutos. Tentava
buscar seu sentido, mas tudo nela parecia tentar causar um pouco de
aversão; não chegava a parecer agressiva, mas era quase antipática;
com certeza queria repulsar quem parava à sua frente. Saí daquela sala um
pouco frustado. Não sei explicar direito, mas não me sentia muito bem.
No
entanto, em minhas idas e vindas de obra em obra, passava por aquela
pintura, que apesar de tudo, chamava certa atenção. Em um desses dias,
quando o salão estava sendo fechado, dei uma última olhada para o lado
de dentro, pelo vidro da porta, e vi a pintura brilhar. Não parecia
reflexo da luz, parecia que... ela simplesmente brilhou... em minha
direção. No dia seguinte lá estava eu: olhando, procurando não sei bem o
quê. De repente, uma listra de tinta no canto inferior esquerdo da
pintura intensificou sua cor e voltou ao normal. Nesse instante,
pareceu-me que um véu foi retirado da frente do quadro e várias linhas e
cores passaram a conversar entre si. Comecei a entender, e a obra
começou a conversar comigo. Percebi de onde vinha a impressão de
repulsão (proposital), as linhas sobrespostas em meio às sombras, em um
limite entre tristeza, desepero e raiva. E eu dizia "Te entendo
completamente!", e a obra me dizia "Nossa! Você me entende
completamente". E eu vi, depois de certo tempo, que não era apenas
tristeza; também havia movimento e cores mais alegres disfarçadas entre
pseudo-olhos esfumaçados. Ora as cores pareciam avermelhadas, ora douradas, ora alaranjadas e até chegavam a tons terrosos. Os dias foram passando e a cada conversa eu
aprendia mais. Percebi até a delicadeza na fina camada de gesso branco
espalhado em determinadas regiões. Por último, percebi um pedaço
estreito de renda cobrindo a lateral direita da tela. Era difícil
perceber em meio àquela composição toda, mas depois de tanto tempo eu
via sensualidade ali e, reparando bem, via-se que acabava por recobrir o
quadro todo.
No dia seguinte à apreensão do quadro, senti que a
pintura me chamava, baixinho. Retirei a tela, a enrolei e levei comigo.
Saí pela noite com ela embaixo do braço. Encontrei um pessoal conhecido
com quem fiquei bebendo vinho por algumas horas. A pintura estava ali ao
lado, aberta. Conversávamos, conversávamos com ela também. Quando
acabou nosso dinheiro, cochilei encostado à uma parede, com a tela entre a
parede e eu. Após umas 2 horas começou a amanhecer, levantei e estendi
minha mão em direçao à obra. Ela pareceu se afastar e disse "Não... isso
tudo foi um engano", eu disse "Como engano? Eu não te entendo
completamente? Nós não conversamos e desvendamos caminhos toruosos da
Arte?" e a pintura disse "Não. Você na realidade só acha que entende. E o
que você achou que eu disse, na verdade você também entendeu errado. Eu
vou com ele", e apontou. Eu vi um cara que era uma mistura de hippie,
morador de rua, louco e um quê de filósofo (o "quê" de filósofo devia ser o
cabelo ou algo assim), que passou a noite bebendo e conversando
conosco. Não parecia ser má pessoa, não mesmo, mas estava bem longe de
ser um genial expoente da Arte.
Fiquei razoavelmente chocado com a
inesperada situação. Virei-me e fui para casa. Passei o mês todo
tentando entender o que aconteceu, qual era o problema, mas não via
resposta. Por fim, já esgotado de tanto andar em círculos, mudei o veio
artístico: passei um tempo com a música. Foram alguns dias divertidos,
novos, empolgantes. Tudo bem que a música era um meio bem mais
democrático e concorrido, e a sua apreciação era de certa forma menos íntima e exclusiva, mas era "o que tinha pra hoje".
Então,
encontro novamente a tela de antes. Encostada em uma árvore, ao lado da
"mistura de hippie, morador de rua, louco e um quê de filósofo". Ela
me diz "Eu sabia que você não sabia nada desta Arte. Ainda bem que eu
não caí na sua. Agora eu estaria jogada em algum canto escuro e úmido
enquanto você ficaria por aí às voltas com a música".
Pasmo novamente. Vou embora. Quem vai entender a Arte? Quem sabe um dia a Arte me entenda.